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Foto do escritorMariana Rattes

As cicatrizes que me constituem.

Há muito quero falar sobre as cicatrizes que me constituem, mas não encontro facilmente por onde começar. São tantas as camadas para que seja possível penetrar nos mistérios e recantos de si mesmo e da vida sem se perder do fio da saúde e da lucidez…


Comprometo-me então comigo mesma a dar o primeiro passo a partir do que pulsa e emerge dentro de mim, nesse instante do AQUI-E-AGORA.


Não são poucas as cicatrizes que tenho. Estou consciente de que existem sofrimentos e processos dolorosos e bem mais agudos do que os que atravessei até hoje e sei também que sempre vivi uma condição social de "privilégio" e "proteção" de muitos males desse nosso mundo desigual e patriarcal, por ser mulher cis, branca e de classe média. Ainda assim, a vida sempre me mostrou que por trás dessas condições "favoráveis", há uma doença que corrói aqueles que, mergulhados na anestesia dos seus privilégios, se perdem do fio da verdade e do compromisso mais amplo e profundo com a própria vida e com a vida dos outros.


Algumas das cicatrizes que carrego são bem visíveis e estão aqui no meu corpo, como as das duas cesáreas de emergência que vivi para poder trazer meus filhos ao mundo e que são até hoje processos que ainda venho aceitando e integrando dentro de mim.


Outras são invisíveis a olhos nus, mas nem por isso deixam de estar cravadas na minha alma e em quem eu sou e venho me tornando, como o alcoolismo sistêmico presente no meu pai, avós e tios, das minhas duas linhagens, tanto materna quanto paterna. O alcoolismo e todas as condições que vieram junto com ele, brigas, violências, agressões, desesperos, medos, mortes precoces, abandonos, falências, tudo testemunhado por mulheres e crianças que amavam esses homens mas que pouco souberam ou puderam fazer para preservar a si mesmas e aos seus.


E essas condições não me atravessaram só sistêmica ou energeticamente, mas fizeram parte das minhas cenas de infância, das emoções-base que me constituem, do sofrimento que testemunhei, que senti, que por vezes me atingiu em cheio, me dilacerou e me doeu na impotência de ser testemunha e parte daquela dor, num corpo tão pequeno, impotente e frágil de criança.


Sofrimento esse que me levou a cuidar, velar e enterrar meu próprio pai quando eu tinha 21 anos e ainda precisava tão desesperadamente dele e do seu chão, que já havia se desfeito há alguns anos antes de sua morte. Sofrimento que me fez testemunhar a minha avó ficar viúva prematuramente e receber a notícia do falecimento de dois dos seus filhos, que me atingiu quando soube que meu avô paterno morreu subitamente uma semana depois de ser internado contra sua vontade em um hospital psiquiátrico.


Cicatrizes que nasceram do medo que vi minha mãe sentir (e que, muitas vezes, senti e sinto em mim também) de abrir o coração e se abrir para amar novamente um homem, que me fizeram muitas vezes ter medo da vida, medo de crescer, medo de me entregar de peito aberto ao que a vida me trazia.


Cicatrizes que vêm de processos que cortam o corpo, atravessam a mente, dilaceram o coração, quebram a estrutura de defesa egóica, que doem, doem por inteiro, marcam, mas que também abrem, às vezes de forma sutil às vezes de forma bruta, nua e crua, uma fenda de luz nos espaços internos mais sombrios e desconhecidos.


Cicatrizes que muitas vezes foram inevitáveis e que são parte integrante do mistério da vida e dessa existência que tenho e que para além das intuições e crenças, não sei ao certo de onde veio e para onde vai.


Cicatrizes que eu não escolheria carregar, dores que não foram fáceis de atravessar, que por vezes se transformaram em traumas, medos, sofrimentos, resistências, anestesias, fugas, mas que também me trouxeram muitos recursos, abertura, força, crescimento, possibilidade de acessar o que está para além das aparências, necessidade de questionar esse mundo tal como ele é, de empreender uma busca mais profunda.


Cicatrizes que foram fundamentais para que eu pudesse me abrir para um caminho de crescimento verdadeiro e que me trouxeram a conexão com o trabalho de terapeuta, esse caminho de mergulhar, me comprometer e facilitar o acesso a uma sabedoria e conhecimento que eu mesma também necessito acessar e manter em minha vida.


Cicatrizes que tenho aprendido a honrar, com o cuidado atento de não romantizá-las. Cicatrizes que me mostram que a vida é mais complexa, dialética e misteriosa do que me ensinaram, que me trazem confiança para mergulhar dentro, que me mostram que sobra algo de potente dentro de mim, quando tudo lá fora se desfaz, quando a vida é avassaladora, quando não podemos controlar a realidade, quando o único caminho possível, ainda que desconhecido e desconfortável, é para dentro.




Texto de Mariana Rattes

Foto de Lucas Retamal, companheiro de vida, registrando um momento forte, doloroso e ao mesmo tempo especial, que trouxe nosso filho ao mundo e deixou uma cicatriz bem marcada da qual venho aprendendo a cuidar


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